Por que a inteligência emocional não é suficiente: o papel da autorregulação neuropsicológica

Daniel Goleman alcançou um feito incrível: difundir um conceito da neurociência de forma acessível e muito eficaz. Essa façanha, no entanto, tem um custo: ser didático muitas vezes sacrifica a precisão para facilitar a compreensão e a aderência. Como jornalista de divulgação científica, Daniel contribuiu imensamente para as áreas da psicologia positiva e da liderança corporativa, munindo as pessoas com conceitos de fácil aplicação que geram efeitos muito positivos.

Entretanto, sua abordagem deixa de lado alguns detalhes cruciais para o entendimento global do comportamento humano, o que muitas vezes faz seu modelo ser limitado para prever e explicar comportamentos.

Entender e comunicar emoções com clareza é um pontapé inicial, mas por vezes não é satisfatório para lidar com a crescente complexidade da vida contemporânea.

Para ampliar sua efetividade, sugere-se combiná-la com um toque a mais: a autorregulação.

Inteligência Emocional: útil, mas não é a solução para todos os males.

Conceitos como autoconhecimento, empatia e gestão das emoções ditavam a cena em treinamentos corporativos da década, ampliando a atenção dada à complexidade humana. Esse impacto é facilmente observado quando comparamos a estrutura do trabalho, os ambientes e a diversidade do mercado.

Entretanto, ao aproximarmos nossa lupa, vemos que ainda há muito a ser discutido nas relações, para criar um ambiente ao mesmo tempo acolhedor e com resultados de alta performance, especialmente em ambientes competitivos e exigentes.

O que é a autorregulação?

Na perspectiva neurocientífica, a autorregulação integra o guarda-chuva das funções executivas, definidas como as habilidades complexas requeridas para planejar, compartimentalizar tarefas, definir objetivos, controlar impulsos e orientar o comportamento a metas.

Autorregulação é a nossa capacidade de ajustar a experiência emocional, que geralmente antecede a consciência e a expressão emocional, processos base da inteligência emocional. Sua sutileza reside em ser capaz de reconhecer padrões comportamentais e orientar o comportamento para atingir desfechos favoráveis. É a capacidade de reconhecer momentos que podem ativar emoções e ser capaz de conter respostas automáticas.

Além das funções executivas, a autorregulação também depende da interocepção — a percepção consciente de sensações internas, como batimentos cardíacos, tensão muscular e padrões respiratórios. Ao afinar essa percepção, o indivíduo identifica sinais corporais de estresse ou fadiga antes que eles se intensifiquem, permitindo intervenções precoces e ajustes comportamentais.

A inteligência emocional é a capacidade de utilizar áreas corticais complexas, enquanto a autorregulação consiste na integração de áreas mais instintivas e de resposta rápida com essas áreas de processamento mais lento e consciente.

Podemos citar duas funções centrais desse processo:

Controle inibitório: capacidade de conter um impulso e escolher a reação comportamental mais apropriada para o contexto;
Flexibilidade cognitiva: habilidade de abandonar estratégias mentais menos eficientes, abrindo mão da rigidez de pensamento.

De forma muito didática: o controle inibitório nos impede de sermos impulsivos e a flexibilidade cognitiva de sermos teimosos.

Essas são as funções executivas emocionais (também chamadas de “quentes”), processadas principalmente no córtex pré-frontal dorsolateral.

Elas são responsáveis por respostas comportamentais intencionais e elaboradas, ditando como as informações recebidas de áreas subcorticais (amígdala e hipotálamo) serão transformadas em comportamentos.

Além dessas áreas, podemos citar a Rede de Modo Padrão (Default Mode Network), um conjunto de regiões cerebrais que se ativam principalmente em estados de observação interna, como devaneios, autoconhecimento e ruminação. Quando essa rede permanece hiperativa (muito ativada) durante tarefas que exigem foco externo, pode prejudicar a autorregulação ao gerar distrações internas e padrões de pensamento repetitivos.

Essas áreas não se relacionam diretamente às áreas que armazenam nosso conhecimento (memória declarativa), exigindo a integração ativa de informações para a tomada de decisões complexas.

A hiperatividade da amígdala, por exemplo, está associada a respostas emocionais exacerbadas e impulsivas.

Já a capacidade de inibição emocional está relacionada à integridade e à conectividade funcional do lobo frontal. Isso explica por que algumas pessoas, mesmo bem informadas e treinadas, têm grande dificuldade em conter reações impulsivas ou manter o foco emocional diante de situações difíceis.

Como a autorregulação atua em favor da alta performance?


É importante entender que essas áreas são impactadas pelo ambiente em que vivemos, desde nossa saúde física, nossos genes etc. É por esse motivo que geralmente ficamos com o humor alterado quando estamos com fome, privação de sono ou doenças, já que nosso organismo favorece áreas fundamentais em detrimento de pensamentos elaborados e reações calculadas.

Não por acaso, muitos pacientes que sofrem de burnout são altamente treinados em inteligência emocional. São pessoas que escutam ativamente, regulam bem a comunicação interpessoal, mantêm a calma sob pressão — até que não conseguem mais.

Esse esgotamento emocional ocorre justamente quando as funções autorregulatórias deixam de dar conta da demanda. A exaustão da inibição constante, o esforço prolongado para manter a flexibilidade diante de mudanças sucessivas e o bloqueio da própria expressão emocional geram sobrecarga neural. O resultado: colapsos emocionais, somatizações e uma sensação de falência interna.

Embora raramente enfatizado, o cérebro é um órgão e, como qualquer outro, depende de funções vitais para o funcionamento adequado. Parece óbvio, mas precisa ser dito: ele precisa de nutrição, circulação, oxigenação, descanso e estímulos adequados. De forma didática (ou seja, menos precisa), considere um músculo, como os dos braços. Se não nos alimentarmos e descansarmos com adequação e regularidade, dificilmente haverá mudanças físicas ao nos exercitarmos. Sem o treino adequado, é possível que ele seja sobrecarregado, levando a graves lesões que requerem tratamentos cada vez mais complexos.

Nosso cérebro tem um funcionamento similar.

Como fortalecer a autorregulação: intervenções baseadas em evidências.
Felizmente, a autorregulação emocional pode ser aprimorada com abordagens cientificamente embasadas. A neuropsicologia aplicada, em conjunto com modelos cognitivo-comportamentais, oferece ferramentas eficazes para o fortalecimento da capacidade autorregulatória.

  • Mindfulness estruturado: práticas breves, baseadas em protocolos como o MBCT (Mindfulness-Based Cognitive Therapy), aumentam a ativação pré-frontal e reduzem a reatividade da amígdala.
  • Treino de funções executivas: técnicas de reabilitação funcional, TCC voltada à metacognição e softwares cognitivos específicos fortalecem o controle inibitório e a flexibilidade mental.
  • Diários de autorregulação e experimentos comportamentais: ajudam a desenvolver a consciência e o ajuste de padrões emocionais automáticos.

Em minha prática clínica, reforço a ideia de que, apesar da aparente simplicidade, essas não são práticas genéricas: são intervenções com fundamentação científica e potencial de mudança profunda. Isso significa que, através de intervenções adequadas, é possível modificar a estrutura física do nosso cérebro e, consequentemente, o nosso comportamento. Pode parecer óbvio, mas, até recentemente, a neuroplasticidade — capacidade do cérebro de se adaptar funcional e estruturalmente — era desconhecida.

Conclusão

A inteligência emocional é importante, mas apenas arranha a superfície de um processo muito mais complexo que ocorre no cérebro. A verdadeira estabilidade emocional vem da autorregulação: uma capacidade refinada, treinável e indispensável para quem vive sob alta pressão.
Reconhecer os seus limites para evitar esgotamento e fortalecer essas áreas pode nos conduzir a desempenhos superiores, sejam acadêmicos ou laborais, além de favorecer emoções positivas de longo prazo.

Este texto foi criado por humanos e para humanos, e, apesar de eu querer que fosse assim, essas informações não vieram todas da minha cabeça. Tudo o que foi abordado neste texto é amplamente discutido e estudado em equipes multidisciplinares em todo o mundo.

Se você se interessou por intervenções em funções executivas, autorregulação ou gostaria de conhecer um pouco mais sobre inteligência emocional, entre em contato e agende sua sessão. Será um prazer orientá-lo nessa descoberta.

Amanda Trindade psicóloga neuropsicologia tratamento tdah toc tod

Amanda Velasco

Psicóloga, pós graduada em Neuropsicologia pelo hospital Israelita Albert Einstein e em psicologia positiva pela PUCRS, entre outros cursos. Área de estudo: funções executiva, TDAH e ativismo pela neurodiversidade.

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